Opinião

Ana Teresa Timóteo: “As mulheres e as doenças cardiovasculares – um paradigma a modificar.”

Leia o artigo de opinião da autoria de Ana Teresa Timóteo, cardiologista, no Hospital Santa Marta, CHULC, de Lisboa, e professora Auxiliar, na NOVA Medica School, a propósito do Dia Mundial do Coração, assinalado a 29 de setembro, acerca da saúde cardiovascular no feminino.

Na Europa, as doenças do aparelho circulatório continuam a ser a principal causa de morte, representando 46% nas mulheres e 38% nos homens. Em Portugal, a tendência é a mesma, representando as doenças do aparelho 30% das causas de morte em 2018, apesar de uma tendência claramente decrescente nas últimas décadas. Contudo, ao analisar com mais detalhe as diferenças por sexos em Portugal, os dados mostram que nas mulheres, as doenças do aparelho circulatório representam 33% de todas as mortes, enquanto nos homens, as doenças oncológicas são já a principal causa de morte, representando as doenças do aparelho circulatório apenas 21%. Importa também salientar que nas mulheres o peso das doenças cerebrovasculares é muito significativo.

Esta desvantagem feminina cardiovascular assenta em três pilares: o posicionamento da própria mulher perante a doença, os profissionais de saúde e o papel dos fatores de risco (clássicos e não clássicos). A mulher desvaloriza habitualmente o seu próprio risco cardiovascular e também procura mais tardiamente os cuidados de saúde. Por outro lado, os profissionais de saúde têm alguma tendência a desvalorizar o risco cardiovascular das mulheres e o seu tratamento, mas também nem sempre reconhecem de forma adequada alguns sintomas e sinais que podem ser mais atípicos. Os fatores de risco clássicos, como a diabetes, a hipertensão e o tabaco, acarretam um risco substancialmente mais elevado de desenvolvimento de doença cardíaca na mulher, comparativamente com o homem.

Existem ainda outros fatores de risco “não clássicos” que têm também mais expressão e maior impacto no risco cardiovascular nas mulheres, como as doenças reumatológicas, os fatores socioeconómicos e psicossociais (ansiedade, depressão, stress profissional e familiar, baixo nível económico). Finalmente, é importante referir que existem fatores de risco que são exclusivos das mulheres, determinados pela sua biologia e ambiente hormonal, incluindo fatores relacionados com a gravidez (hipertensão da gravidez, diabetes gestacional, abortos espontâneos recorrentes, partos pré-termos), patologia do foro ginecológico (ovário poliquístico, endometriose) ou alterações do seu ambiente hormonal (insuficiência ovárica prematura, menopausa).

Ao longo do seu ciclo de vida, encontramos também algumas patologias cardíacas que têm mais expressão ou são exclusivas nas mulheres. Salienta-se a cardiomiopatia periparto, a isquémia miocárdica sem doença coronária epicárdica significativa, a disseção espontânea das coronárias, a síndrome de Takotsubo e a insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada, o prolapso da válvula mitral. Nos grupos etários mais avançados, a fibrilhação auricular é também mais prevalente nas mulheres.

O envolvimento valvular reumático é igualmente mais expressivo nas mulheres e isto poderá condicionar opções terapêuticas relevantes, sobretudo nas mulheres mais jovens, como no que diz respeito à anticoagulação oral, pelo risco potencial teratogénico que deve ser sempre equacionado. Também a cardiotoxicidade induzida pelo tratamento de patologia oncológica, em particular no tratamento da neoplasia da mama, têm uma maior expressão nas mulheres.

A utilização de contraceção oral ou terapêutica de substituição hormonal é uma contraindicação em mulheres com doença cardíaca estabelecida (de uma forma geral), mas nas restantes situações deverá ser ponderada caso a caso, uma vez que poderá haver algumas situações em que poderá ser benéfico, como por exemplo na menopausa precoce.

Para finalizar, é importante referir a subrepresentatividade feminina nos vários ensaios clínicos na área cardiovascular, que numa análise de 740 ensaios clínicos com mais de 850.000 participantes, apenas 38,2% foram mulheres. Daí a importância de aumentar a inclusão de mulheres em ensaios clínicos.

Em conclusão, as mulheres na área cardiovascular são habitualmente sub-reconhecidas, sub-diagnosticadas, sub-tratadas, sub-estudadas e sub-representadas em ensaios clínicos, sendo fundamental modificar esta realidade.