Após um evento clínico, a reabilitação precoce é fundamental, tomou boa nota o Jornal Médico na entrevista ao presidente da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose (SPA). Mas o cenário muda de figura quando falamos do acesso a estes cuidados específicos, realidade ainda difícil “quer para os muitos eventos na área cerebrovascular, quer no território coronário”. João Sequeira Duarte percorre os principais contornos do panorama atual do combate à aterosclerose, uma doença que, podendo relevar-se logo na infância e ter o seu epílogo na idade adulta, média ou avançada, deixa muita margem para a prevenção.
Jornal Médico (JM) | A aterosclerose integra um conjunto de manifestações do grupo das doenças cardiovasculares, responsáveis por quase 30 por cento do total de óbitos (2017) segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE). Que batalhas gostaria que fossem ganhas no combate à aterosclerose?
João Sequeira Duarte (JSD) | Como é natural, gostaria que os anos de vida perdidos prematuramente no nosso país e no mundo, por causa das ateroscleróticas, pudessem continuar a baixar de uma forma consistente e duradoura.
JM | Recentemente foi publicado um estudo por uma equipa portuguesa sobre os custos da aterosclerose em Portugal. Uma das conclusões é o facto de a doença apresentar um importante impacto económico, correspondendo a uma despesa equivalente a 1% do produto interno produto (PIB) nacional e a 11% da despesa corrente em saúde, em 2016. Que comentários faz a este estudo?
JSD | São números importantes que mostram a necessidade de continuar a trabalhar para reduzir a carga de doença e a prevalência dos fatores de risco vascular presentes na nossa população. Por essa via reduziríamos o número de eventos clínicos agudos que consomem a maior fatia desta despesa corrente.
JM | Como avalia a atual investigação nacional nesta patologia específica?
JSD | Tem vindo a crescer, a internacionalizar-se, a construir parcerias nacionais e externas, para ganhar maior expressão, nomeadamente em termos da chamada investigação básica, que frequentemente está muito ligada a questões relevantes colocadas pelos clínicos.
JM | De que forma a SPA pretende contribuir para a formação pós-graduada na área da aterosclerose durante o mandado desta direção a que preside? No vosso plano de atividades, como pretendem incentivar essa mesma formação e junto de quem?
JSD | Os membros desta direção estão empenhados em continuar a desenvolver os planos delineados pelos anteriores elencos diretivos e, procurando contribuir para a formação pós-graduada, desde logo declarámos como prioritários os seguintes: realização anual do Congresso de Aterosclerose; publicação regular online da Newsletter de Aterosclerose; divulgação das bolsas de investigação e do prémio, para promover e facilitar trabalhos nas diversas áreas da Aterosclerose; estimulação das atividades científicas e de intervenção social com sociedades científicas parceiras; partilha das Guidelines da EAS [European Atherosclerosis Society] de 2019, adaptadas e resumidas por forma a fomentar as melhores práticas clínicas na medicina cardiovascular.
JM | O que pensa sobre a digitalização dos cuidados médicos e da telemedicina? E de que modo, no âmbito da monitorização dos doentes e sua reabilitação, a telemedicina pode ser uma mais-valia?
JSD | Numa doença crónica que durante anos é assintomática ou subclínica as ferramentas digitais, o benchmarking e o gaming na área da promoção da saúde, são meios que não devemos ignorar quando pretendemos alargar os comportamentos saudáveis a toda a população e aumentar a literacia em saúde, para que esta não deixe de ser um direito consagrado na Constituição da República, enquanto modo de estar numa vida que sempre se deseja longa e feliz.
JM | Segundo o primeiro inquérito sobre alimentação e atividade física em contexto de contenção social, promovido pela Direção-Geral da Saúde (DGS) e divulgado em maio do ano passado, o sedentarismo provocado pelo confinamento ajuda a explicar o aumento de peso reportado por 26,4% dos portugueses e a deterioração dos hábitos alimentares de mais de quatro em cada 10 durante este período. Ainda segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), “68% da população portuguesa acima dos 15 anos tem excesso de peso”, um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de aterosclerose. Na qualidade de endocrinologista, qual o peso do agravamento destes dois fatores – sedentarismo e alimentação – no agravamento da doença? Quais os passos a dar para retomar o seu controlo?
JSD | Sem dúvida que a nutrição e a atividade física são duas vertentes decisivas para a saúde em geral e também para a cardiovascular. Realço, no que respeita ao sedentarismo, que os responsáveis políticos sempre autorizaram a prática de atividade física exterior nas proximidades da residência, em todos os períodos de confinamento, por decisiva para a saúde física e mental. Eu sempre continuei a prática deste tipo de atividade, desfrutando do excelente clima que temos; e, apesar de controlado de quando em vez pelas autoridades, nunca fui impedido de a realizar.
JM | Em que medida é que a Medicina Geral e Familiar pode ser um braço de apoio na reabilitação e acompanhamento dos doentes?
JSD | Após um evento clínico a reabilitação precoce é fundamental, mas o acesso a estes cuidados ainda é difícil, quer para os muitos eventos na área cerebrovascular, quer no território coronário. Também por isso o médico de família pode e deve ter um papel importante para identificar e orientar atempadamente os doentes para as instituições capazes de prestar esses cuidados quando a referenciação da alta hospitalar não tem a sequência desejada.
JM | Que medidas, ao nível da prevenção e tratamento, deve o médico de família privilegiar para recuperar o controlo da população em maior risco cardiovascular?
JSD | Sendo a aterosclerose uma patologia que pode iniciar-se na infância e ter o seu epílogo na idade adulta, média ou avançada, consoante a carga de doença que formos acumulando, há muita margem para a prevenção, que deve começar desde as idades mais jovens. Daí, insisto, o médico de família ter um papel único na identificação e controlo dos vários fatores de risco que têm impacto na saúde vascular ao longo das diferentes décadas da vida.
JM | Pretende que a sociedade possa ajudar a “reabilitar e reintegrar as pessoas vítimas de eventos significativos”. Que ações tem em mente?
JSD | Reconhecemos não ter meios humanos e materiais para atuar neste terreno desafiante. Mas temos capacidade e vontade de alertar e motivar profissionais de saúde, instituições e até os decisores políticos para o muito que está por fazer neste domínio e como as melhores práticas asseguram melhores condições de vida às pessoas que sofrem de eventos cardiovasculares.
JM | Enquanto presidente da SPA, que marca gostaria de deixar no seu mandato?
JSD | Esta direção e eu próprio gostaríamos de contribuir para que a SPA se mantenha uma sociedade ativa e relevante a nível da organização dos cuidados de saúde em Portugal, desenvolvendo altitudes pró-ativas de diálogo com decisores políticos e serviços de saúde, bem como com a Ordem dos Médicos e demais sociedades científicas afins. Um contributo, também ele, para reforçar o Registo Nacional Hipercolesterolemia Familiar, além de fomentar e implementar parcerias para a realização de estudos de natureza epidemiológica sobre aspetos importantes da distribuição dos fatores de risco, a carga de doença e avaliação dos cuidados prestados às populações na área da doença aterosclerótica.