Nuno Amândio: “Os médicos usam diretrizes diferentes para decidir quando se deve fazer um teste de colesterol”

Diversos são os fios condutores seguidos pelo olhar atento de um especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF) no Hospital CUF Porto. Nuno Amândio, em entrevista ao Jornal Médico, assinala que a diversidade faz também todo o sentido ao falarmos de alimentação. Quanto mais variada, mais próximos estamos de descobrir “a chave para uma vida saudável”. O entrevistado reflete, ainda, sobre a doença de hipercolesterolemia familiar e o que de mais relevante interessa reter sobre o tema.

Jornal Médico (JM) | Existe uma ideia cristalizada de que o colesterol é um problema de pessoas com idade avançada e/ou excesso de peso. Podemos dizer que, neste contexto, o ditado popular “quem vê caras, não vê corações” é adequado?

Nuno Amândio (NA) | A evidência é esmagadora. Basicamente, ninguém diz que o colesterol não é importante. É uma realidade que, direta ou indiretamente, a maior parte de nós já viveu de perto. Lembro-me do caso de um doente que viu – era ele ainda adolescente – o seu pai com menos de 40 anos falecer por um extenso enfarte agudo do miocárdio. Aliado ao consumo de tabaco, o pai tinha um perfil lipídico de risco, para o qual não prestou os devidos cuidados. Depois disto, o meu doente embarcou numa vida governada por cuidados alimentares, exercício físico, ausência de consumos nocivos e monitorização/controlo do colesterol. Quando testámos os seus filhos, de 9 e 14 anos, verificámos que o perfil lipídico de ambos era desapropriado levantando a suspeita de estarmos perante um distúrbio genético do metabolismo lipídico. Não há motivos para não verificar. É um fator de risco.

JM | Através de que tipo de questionário deve o clínico, nomeadamente o especialista de MGF, orientar a sua consulta para despistar o colesterol? E qual o tratamento a adotar em primeira linha?

NA | Os médicos usam diretrizes diferentes para decidir quando uma pessoa deve fazer um teste de colesterol. No geral, as recomendações devem sempre adequar-se ao doente em específico, e fundamentadas numa história clínica e exame físico também eles adequados, já que vários aspetos importarão ter em conta antes de formular uma proposta de orientação. A determinação do risco cardiovascular é importante da mesma forma que é importante perceber a história familiar, o estilo de vida e os antecedentes do doente. O médico saberá, deste modo, avaliar as circunstâncias e aconselhar sobre quando é adequado realizar um teste de colesterol. Na sua generalidade, toda a literatura recomenda alterações no estilo de vida como forma primordial de controlar o colesterol. A adoção de hábitos de vida saudáveis e a evicção de consumos nocivos ajudam a manter o colesterol em níveis adequados. Parar de fumar eleva o HDL e diminui o risco de doenças cardiovasculares. O uso moderado de álcool tem sido associado a níveis mais altos de HDL, mas os benefícios não são suficientemente fortes para recomendar a ingestão de álcool a quem ainda não bebe. Se há uma ingestão habitual, esta deve ser feita com moderação. O excesso pode causar sérios problemas de saúde. Exercício físico regular, 30 minutos de intensidade moderada, quatro a cinco vezes por semana, e cuidados alimentares, ajudam a baixar o colesterol e a manter um peso corporal apropriado. É crucial adotar comportamentos alimentares saudáveis e responsáveis. O mesmo pode passar por reduzir a ingestão de gordura saturada e de gordura trans.  Em vez de assar ou fritar, preferir opções mais saudáveis como grelhar ou cozer. Também é crucial aumentar a ingestão de frutas, vegetais e fibras. Uma dieta saudável deve incluir uma mistura de pelo menos 30g de fibra (pão integral, cereais integrais, nozes, sementes, frutas e vegetais como feijão, ervilha e lentilhas, por exemplo), já que, entre outros benefícios, ajudam a diminuir o colesterol. O médico deverá aconselhar quanto ao uso ou não de terapia medicamentosa, discutindo benefícios e possíveis efeitos adversos associados à toma de um qualquer fármaco. As estatinas são medicamentos frequentemente usados para este propósito. O seu uso está recomendado em indivíduos com doença cardíaca coronária ou outra doença cardiovascular, ou cujo histórico médico pessoal ou familiar sugere que provavelmente irão desenvolvê-la nos próximos 10 anos (determinado através do cálculo do risco cardiovascular).  É natural que optar por mudar para uma dieta responsável exige mais esforço do que tomar um medicamento diariamente. Significa expandir a variedade de alimentos que coloca no carrinho de compras e habituar-se a novas texturas e sabores. Uma dieta rica em frutas, vegetais, peixe, fibras, feijão e nozes vai para além da redução do colesterol. É a base de uma vida saudável.

JM | Para doentes que manifestem hipercolesterolemia familiar, qual o protocolo?

NA | A hipercolesterolemia familiar [HF] é o distúrbio monogénico mais frequente e grave do metabolismo lipídico. É um distúrbio hereditário autossómico dominante, o que significa que se transmite verticalmente dos pais a 50% dos filhos. É causado principalmente por mutações no gene que codifica o recetor da lipoproteína de baixa densidade [LDL]. Mutações menos frequentes nos genes APOB e PCSK9 têm consequências funcionais semelhantes. O defeito clássico na via do recetor de LDL leva à diminuição da depuração do colesterol LDL, aumentando a sua concentração plasmática e, portanto, do colesterol total [CT]. O CT na forma heterozigótica da HF varia entre 290 e 500 mg/dL e na forma homozigótica pode ultrapassar os 1000 mg/dL. O HDL e os triglicerídeos estão geralmente dentro dos valores de referência. A HF é uma causa evitável de doença arterial coronariana [DAC] prematura, devido à aterosclerose acelerada, especialmente das artérias coronárias e aorta proximal, que se verifica desde o nascimento nestes doentes. Em Portugal, estima-se que existam 20 mil pessoas com HF, com base numa prevalência de 1/500. Segundo o Estudo Português de Hipercolesterolemia Familiar estão atualmente identificados cerca de 4,5% desses indivíduos, num total de mais de 1.000 famílias estudadas, dos quais cerca de 30% são crianças, que estão agora a receber tratamento adequado para não desenvolverem DAC prematura. O Alentejo e os Açores são as regiões com a maior percentagem de casos identificados. O diagnóstico de HF é geralmente baseado num conjunto de critérios clínicos, bioquímicos, na história familiar de hipercolesterolemia e de doença cardiovascular [DCV] prematura e testes genéticos. A presença de crianças com hipercolesterolemia na família aumenta a probabilidade do diagnóstico de HF.  Existem alguns critérios de pontuação para o diagnóstico de HF (US MedPed Program, Simon Broome, Dutch Lipid Clinic Network — DLCN). Os critérios da DLCN e de Simon Broome são os mais utilizados e recomendados para uso clínico na Europa. Esses critérios atribuem uma pontuação ao histórico médico pessoal e familiar, exame físico (estigmas clínicos específicos), perfil lipídico e mutações genéticas. A deteção precoce de HF em crianças e jovens é um desafio particular. Alguma literatura sugere que todas as crianças entre os 9 e os 11 anos de idade sejam testadas rotineiramente para hipercolesterolemia. Na prática clínica será, porventura, mais fácil rastrear os indivíduos da comunidade com histórico familiar de hipercolesterolemia e/ou DAC prematura. O desenvolvimento de um modelo de atuação nacional que integre a coordenação/participação entre os médicos dos cuidados de saúde primários e dos cuidados de saúde secundários será, provavelmente, capaz de alcançar melhores resultados ao nível do diagnóstico e prestação de cuidados atempados à população com HF e outras dislipidemias aterogênicas. O tratamento deve ser centrado no doente, isto é, deve ter em conta as suas necessidades e preferências. Uma boa comunicação é essencial, apoiada em informações baseadas na evidência. As recomendações alimentares e o exercício físico podem produzir benefícios ao nível do perfil lipídico, manutenção de um peso corporal adequado e prevenção no desenvolvimento de outras doenças concomitantes (diabetes, hipertensão, etc.) pelo que devem ser incentivadas a todos os portadores de HF. No entanto, a terapêutica não farmacológica tem menor impacto nestes doentes devido às concentrações elevadas de LDL motivadas pelo distúrbio genético.

JM | O tabagismo é outro fator de risco ao estar associado à redução do designado colesterol bom, no entanto, apesar da quebra dos cigarros convencionais, há agora um consumo de tabaco aquecido e IQOS. O que diz a evidência? Há alguma descida no risco?

NA | Os produtos de tabaco aquecidos [PTA] introduzidos no mercado nos últimos anos, criados como uma alternativa a outros tipos de consumos (cigarro convencional), são o esforço mais recente das empresas tabaqueiras para se adaptar a um cenário regulatório em constante mudança, mantendo e expandindo a sua base de clientes num meio onde a aceitabilidade social do uso e consumo de tabaco estão em declínio. Dada a sua relativa recente introdução e curto tempo de exposição (de quem consome), ainda não existe atualmente evidência concreta que nos permita concluir que os PTA são menos prejudiciais. No entanto, os próprios dados da Philip Morris International [PMI] não sustentam as suas afirmações de que o IQOS é menos perigoso do que os cigarros convencionais. Na verdade, existe alguma preocupação com o facto de que o IQOS, embora podendo expor os consumidores a níveis mais baixos de alguns tóxicos, não proteger face a níveis mais elevados de outros tóxicos, também eles prejudiciais. Não é ainda claro como este perfil toxicológico se traduz em efeitos para a saúde a curto e longo prazos — e qual o seu impacto na saúde pública. Há estudos que mostram efeitos agudos semelhantes aos dos cigarros tradicionais (na frequência cardíaca, na pressão arterial e na rigidez arterial). O facto é que as alegações de exposição reduzida são mal interpretadas como alegações de danos reduzidos. Isto levanta sérias preocupações de que os PTA e respetivo marketing irão prejudicar jovens e adultos jovens e afetar a cessação tabágica entre os consumidores tradicionais, sem fornecer benefícios à saúde. Foi, muito recentemente, divulgada uma revisão sistemática no International Journal of Environmental Research and Public Health (“Exposure to Heated Tobacco Products and Adverse Health Effects, a Systematic Review”) realizada para identificar estudos relevantes sobre os PTA, publicados em Inglês, de 2015 a fevereiro de 2021. Da análise foram reportadas diferenças entre biomarcadores de exposição e biomarcadores cardiovasculares-respiratórios entre consumidores de cigarros convencionais e utilizadores PTA. Apesar das melhorias observadas em alguns marcadores de risco, especialmente colesterol, sICAM-1, 8-epi-PGF2, 11-DTX-B2, HDL e FEV1, nos consumidores de PTA face aos fumadores convencionais, foram relatadas alterações na função mitocondrial em consumidores de IQOS, que podem exacerbar ainda mais a inflamação e remodelamento das vias aéreas, e o desenvolvimento de neoplasias malignas do pulmão. Os PTA aumentam a adesão microbiana ao trato respiratório promovendo as infeções respiratórias. Por tudo isto, o IQOS provavelmente expõe os seus consumidores a riscos menores de algumas doenças e riscos maiores de outras. São precisos mais estudos para averiguar qual a relação entre o tempo/frequência de exposição/uso dos PTA e potenciais efeitos negativos para a saúde.

JM | Em que medida podem ser objeto de preocupação baixos níveis de HDL? Em que casos será necessária terapêutica farmacológica?

NA | Em relação ao colesterol HDL, a literatura tem vindo a apoiar sustentadamente a associação entre níveis elevados e menor risco cardiovascular. Até certo ponto, as pessoas que apresentam níveis naturalmente mais elevados de HDL têm menor risco de padecer de enfarte agudo do miocárdio e/ou acidente vascular cerebral. É menos claro se esse mesmo benefício é verdadeiro nos casos em que são utilizados fármacos para elevar o HDL. Ao contrário do LDL, os ensaios clínicos de vários medicamentos projetados especificamente para aumentarem os níveis de HDL não mostraram efeitos no que respeita à redução do risco cardiovascular. Níveis baixos de HDL cursam normalmente com vários fatores que afetam de uma maneira geral a saúde (nível socioeconómico, estilos de vida, problemas de saúde, etc.) e que são eles próprios impulsionadores de vários tipos de doenças. De referir que as pessoas que naturalmente têm níveis de HDL extremamente altos (acima de 100 mg/dL) parecem ter um risco acrescido de doença cardíaca (provavelmente por fatores genéticos). Neste atual contexto, antevê-se improvável que seja útil a abordagem farmacológica apenas e só com o intuito de corrigir ou aumentar o HDL. A coisa mais importante a fazer é adotar comportamentos alimentares saudáveis e responsáveis e um estilo de vida mais ativo, já que os mesmos ajudam a elevar o HDL.