Manuel Carrageta: “A gravidade da Covid-19 não deve obscurecer outras pandemias, em grande medida evitáveis, como a das DCV”

Nunca é demais relembrar que, pelo facto de haver uma pandemia de Covid-19, não vão deixar de continuar a ocorrer enfartes agudos do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais. O alerta parte do presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia, Manuel Carrageta, que em vésperas do Dia Mundial do Coração – que se assinala a 29 de setembro – conversou com o Jornal Médico sobre o impacto da infeção pelo SARS-CoV-2 na prevenção e tratamento das doenças cardiovasculares.

 

JORNAL MÉDICO (JM) | Quais as principais doenças cardíacas que afetavam a população portuguesa na era pré-Covid e quais as que se intensificaram no último semestre?

MANUEL CARRAGETA (MC) | As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte a nível nacional, sendo responsáveis por mais de um terço da mortalidade total. Mesmo em tempo de pandemia por Covid-19, não podemos ignorar que morrem cerca de 100 pessoas por dia, em Portugal, devido a doença cardiovascular (DCV).

 

JM | Verificou-se um aumento na mortalidade por DCV decorrente da pandemia por Covid-19?

MC | De acordo com números oficiais, até ao final de agosto morreram 1.822 pessoas de Covid-19 em Portugal e observou-se um excesso de 4.445 mortes por outras doenças, acima da média do número de óbitos dos últimos cinco anos.

Uma grande parte deste número elevado de mortes foi causada por doenças com elevada letalidade, tais como, o enfarte agudo do miocárdio (EAM) e o acidente vascular cerebral (AVC), que são altamente evitáveis através do controlo dos fatores de risco. Por outro lado, a luta contra o cancro, a segunda causa de morte em Portugal, depende essencialmente do diagnóstico precoce para ter sucesso, o que com consultas e exames adiados, ficou comprometido.

 

JM | Que fatores psicossociológicos e patológicos provocaram o aumento das doenças cardíacas no período pós-Covid?

MC | Embora seja normal que os doentes se sintam ansiosos e assustados com o risco desta infeção, é da maior importância, como já dissemos, manter um estilo de vida saudável. Fazer uma alimentação saudável, praticar exercício diário, não fumar, dormir o suficiente e procurar reduzir o stress, aumenta a resistência ao vírus e é fundamental também para reduzir o risco de um conjunto de doenças, nomeadamente as cardiovasculares, que são responsáveis por um número de mortes muito superior à Covid -19. Não é demais insistir que, no caso de contrairem a infeção, estar o mais saudável e controlado possível da sua DCV, ajuda a resistir melhor ao vírus, pelo que devem continuar a tomar a medicação e a visitar o médico com a mesma regularidade com que o faziam antes da pandemia.

 

JM | Quais os maiores desafios sentidos pelos médicos cardiologistas, no acompanhamento prestado aos seus doentes nesta fase de pandemia?

MC | As queixas cardíacas de falta de ar e de cansaço podem ser sintomas de Covid-19, mas também podem dever-se, por exemplo, a insuficiência cardíaca, o que levanta dificuldades diagnósticas. Alguns doentes idosos ou mais frágeis com Covid-19 podem não ter febre e manifestar sintomas atípicos bastante inespecíficos – tais como, confusão mental, quedas, entre outros – o que, por si só, não levanta suspeita da presença da infeção.

Para além da existência de DCV se associar a maior risco de morte nos infetados com o vírus SARS-CoV-2, também a Covid-19 causa com frequência várias complicações cardiovasculares, nomeadamente, miocardites, arritmias, tromboembolismo e até EAM. Por outro lado, alguns dos fármacos que estão a ser utilizados no tratamento da Covid-19 podem ter efeitos secundários cardiovasculares, tais como, provocar ou agravar a insuficiência cardíaca, prolongar o intervalo QT, causar arritmias, entre outros. Portanto, pelo facto de se ser doente do coração, no caso de contrair a Covid-19, está em risco de ter uma infeção mais grave.

 

JM | Qual é a necessidade de consciencializar a população para os cuidados a ter com o seu coração?

MC | Muitos doentes com problemas graves de saúde, em grande parte por medo de contágio por Covid-19 e pelas ordens para “ficarem em casa”, evitaram ou dirigiram-se, só em fases tardias das suas doenças, às unidades de saúde e aos hospitais, o que contribuiu seguramente para o aumento da mortalidade global.

É um facto que, durante estes primeiros meses de pandemia, a procura das urgências e das consultas de Cardiologia, como tem sido largamente noticiado, diminuiu de forma acentuadíssima. Muitas destas mortes poderiam ter sido evitadas com a instituição, no momento devido, de cuidados médicos preventivos e especializados.

 

JM | O evento promovido pela FPC, Quinzena do Coração – no âmbito do Dia Mundial do Coração, que se assinala a 29 de setembro – segue a linha proposta pela World Heart Federation. Acredita que este tipo de iniciativas de sensibilização da população tem uma relação direta na diminuição da prevalência das DCV?

MC | A inegável gravidade da pandemia de Covid-19 não deve obscurecer outras pandemias, como as cardiovasculares, que são em grande medida evitáveis. Apesar da ignorância que ainda existe sobre a SARS-CoV-2, é bem conhecido que esta infeção pode causar doença vascular provocada pela resposta imunitária e pela libertação de citoquinas inflamatórias. Em consequência, os doentes podem sofrer EAM, miocardites, insuficiência cardíaca, AVC e também doenças de outros órgãos.

A adoção de medidas de estilo de vida saudável e o controlo dos fatores de risco um efeito duplo, ao contribuir não só para reduzir as DCV, como também para ajudar na luta contra a Covid-19. Os doentes idosos mais robustos e com os fatores de risco controlados (hipertensão, obesidade e diabetes) têm, não só menor risco de sofrer de complicações da Covid-19, como de morrer de doença cardiovascular.

Infelizmente, continua a verificar-se uma baixa procura deste apoio médico não só preventivo como especializado, pelo que se torna necessário tomar medidas, nomeadamente desenvolver campanhas que esclareçam a população sobre a necessidade de continuar a prevenir e controlar as DCV, que são a pandemia que mais mata em Portugal.

Não é demais insistir que, no caso de alguém contrair a infeção, estar o mais saudável e controlado possível da sua DCV, ajuda a resistir melhor ao vírus, pelo que o doente deve continuar a tomar a medicação e visitar o médico com a mesma regularidade que fazia antes da pandemia surgir. Para terminar, lembramos que, pelo facto de haver uma pandemia de Covid-19, não vão deixar de continuar a ocorrer EAM e AVC.