António Conceição: “A grande maioria dos sobreviventes de AVC, na prática, são ‘entregues’ à MGF”
O presidente da Portugal AVC – União de Sobreviventes, Familiares e Amigos, António Conceição, em entrevista ao Jornal Médico, considera que o papel do especialista em Medicina Geral e Familiar (MGF) é “fundamental” na gestão e acompanhamento do doente com AVC. Afirma, ainda, que “a grande maioria dos sobreviventes de AVC, na prática, são ‘entregues’ à MGF”.
Jornal Médico (JM) | De que forma é que a Portugal AVC — União de Sobreviventes, Familiares e Amigos ajuda as pessoas que já sofreram um AVC?
António Conceição (AC) | A Portugal AVC presta ajuda aos sobreviventes e seus familiares e/ou cuidadores de variadas formas, porque, no AVC, cada situação é verdadeiramente única. No entanto, sintetizaria em 3 grandes áreas, que nos parecem as mais necessitadas e estão na origem da nossa existência. A informação é rigorosa científica e técnica, mas o mais acessível possível ao comum dos cidadãos. É prestada, por exemplo, através do nosso site (https://www.portugalavc.pt/) e das redes sociais, ou, inclusive em papel, no Guia do Sobrevivente e do Cuidador, sempre de distribuição gratuita. A representatividade, o levar a voz dos sobreviventes e cuidadores junto das entidades oficiais e da comunicação social. Porque, pelo menos nos assuntos que nos dizem respeito, temos que ser ouvidos. A ajuda mútua. Diariamente nos chegam as mais variadas questões, através de todos meios (telefone, email, redes sociais, etc.), e damos uma resposta a todas. Mas também queremos estar fisicamente próximos dos sobreviventes de AVC, nos Grupos de Ajuda Mútua (GAMs). Que já existem em múltiplos locais do território nacional, do Minho ao Algarve e Madeira, e estão em contínuo crescimento. São grupos muito direcionados para a fase pós-aguda, e sobretudo crónica. Têm em comum o ser espaço de partilha, formação pela positiva e mesmo convívio, que dá o “conforto” de não se sentir sozinho e da (re)socialização sem constrangimentos. Sempre livres, gratuitos, e sem compromisso de espécie alguma.
JM | Conte um pouco do seu percurso. O que o levou a criar a Associação? Já conta com quantos membros?
AC | A minha “ligação” ao AVC vem simplesmente pelo facto de ser sobrevivente de um forte Acidente Vascular Cerebral, aos 41 anos, que após uma boa recuperação e reabilitação, ainda me deixou com notórias sequelas para a vida. A minha área profissional não tinha nada que ver com a saúde. Porém, sentindo também as dificuldades que referi, e a ausência de uma associação prevalente mente de sobreviventes e que os representasse, juntamente com outras pessoas, há 5 anos fundámos a Portugal AVC. Os membros da associação, incluindo já cerca de um milhar de associados – que espontaneamente, se quiseram associar, porque nunca colocamos como condição para usufruir da nossa ação, nem sequer perguntamos – estão já em todos os distritos, regiões autónomas e mesmo na emigração.
JM | Como é que as pessoas se podem associar? Porque é que devem fazê-lo?
AC | Podem associar-se de forma muito simples, em www.portugalavc.pt/associar-me , em menos de 2 minutos. Obviamente é, antes de mais, uma forma de partilhar a nossa causa, de ajudar mesmo que simbolicamente, no fundo de dar ainda mais força aos objetivos.
JM | Quais os principais objetivos da Portugal AVC — União de Sobreviventes, Familiares e Amigos?
AC | Muito genericamente, a nossa missão assenta em dois pilares fundamentais, que consideramos profundamente unidos: a promoção e a participação em iniciativas que visem contribuir para a prevenção do AVC e suas consequências, ou seja, dito de forma simples, mas muito direta, não é por nos ter acontecido, que nós aceitamos que outros passem pela mesma “experiência”, antes pelo contrário; a contribuição para dar resposta às necessidades sentidas pelos sobreviventes de AVC, seus familiares, cuidadores, e outros, como já expliquei.
JM | Têm em vista formular parcerias com profissionais de saúde? Se sim, com quais?
AC | Os profissionais de saúde podem e fazem parte da nossa associação, incluindo da Direção e dos outros Órgãos Sociais. São um esteio fundamental da nossa ação, a começar pelo rigor científico e terapêutico da informação que transmitimos, até ao equilíbrio e ponderação de diferentes posições, que procuramos que estejam sempre presentes na mesma. Essa complementaridade de pontos de vista, é uma grande riqueza para nós. De facto, todos os profissionais da saúde, em especial das várias áreas que podem ter a ver com o AVC, são muito considerados pela Portugal AVC, e estamos sempre disponíveis para o diálogo e a colaboração, quer individualmente, quer com as sociedades científicas, associações profissionais ou outras entidades congéneres. Embora, a rigorosa independência e equidistância, e mesmo o evitar hipotéticas injustiças de avaliação, não nos permita aceitar protocolos com o profissional A ou B, a unidade de saúde X ou Y, por exemplo. Mas, repito, merecem muito respeito e admiração todos os que, seriamente, trabalham nesta vasta área.
JM | Que iniciativas têm previstas para a prevenção do AVC?
AC | Como já disse, estamos sempre abertos à colaboração, à organização conjunta, ou outras formas de criar sinergias, em muitas iniciativas com esta finalidade. Acontece, e queremos que aconteça cada vez mais. Das que partem da nossa parte, destacava uma entre elas, a campanha “O AVC vai à Escola”. Em que, à parte primordial e absolutamente prioritária da sensibilização para a prevenção e para o conhecimento dos sinais de alerta, sempre a cargo de profissionais de saúde, se alia, geralmente com a presença de um ou mais sobreviventes de AVC, a sensibilização para a existência de uma vida pós AVC e para a educação para a diferença e as eventuais limitações. É uma iniciativa que tem tido muito bem acolhimento, particularmente entre os alunos, até porque o AVC é uma realidade que toca muitas famílias.
JM | Quais é que são as principais dificuldades sentidas pelas pessoas que já sofreram um AVC e os seus familiares/cuidadores?
AC | Claro que o AVC, sendo um evento de saúde de instalação súbita, imprevisto, que mesmo quando tratável tem uma janela temporal muito curta e em que todos os segundos podem decidir o curso de uma vida, só por si, pode provocar um forte abalo e uma terrível confusão, inclusive em outros membros da família e próximos. Diz-se com muita propriedade, que todos “sofreram” um AVC. Claro que, pelo menos um diretamente, mas todos foram seriamente afetados. Acresce ainda que, nunca tendo sido uma “doença (só) de velhos”, atualmente, parece que as pessoas atingidas em idades jovens, em plena vida ativa, vão sendo cada vez mais. Em Portugal, na fase aguda (quando o AVC acontece), o tratamento dispensado – pese ainda algumas exceções – é de boa qualidade, em muitos casos no sentido de quase reverter ou diminuir significativamente as potenciais sequelas. Mas, é depois que as disparidades aumentam significativamente, e que uma reabilitação coordenada, multidisciplinar, atempada, sem limites de tempo estandardizados, no sentido de ser obtida a maior eficácia possível, não chega à maioria de sobreviventes (e, consequentemente, familiares). Já para não falar em pessoas “apenas” com sequelas não visíveis (como as cognitivas, ou o cansaço crónico, por exemplo), que têm ainda mais dificuldade em ver reconhecida a sua situação. Em particular, à medida que vai chegando a fase crónica, é comum sobreviventes de AVC e familiares sentirem que são abandonados à sua sorte, num período já de si difícil, muitas vezes de consciencialização que a sua vida mudou, com as depressões e outros problemas psicológicos tão presentes. Acresce a tal ausência de informação, que pode vir já desde o hospital, aliada a uma maior fragilidade das pessoas…
JM | Como vê o papel da Medicina Geral e Familiar (MGF) na gestão da recuperação?
AC | É fundamental e crucial! A grande maioria dos sobreviventes de AVC, na prática, são “entregues” à MGF. E isso acontece, em boa parte do país, apenas com uma carta – mesmo essa, muitas vezes, escrita apenas quase só reproduzindo a nota de alta, e depois lida na diagonal. É imperioso que se estabeleça um diálogo bidirecional, se criem canais de comunicação para utilização as vezes que for necessário, entre os diferentes serviços de saúde. Uma parte da diminuição da sensação de abandono, a que aludi, pode começar logo aí! Porque a recuperação, e, sobretudo, a reabilitação – que são dois termos que não são sinónimos – é diversa em cada situação. Que, repito, pode ter de ser multidisciplinar, incluindo a saúde mental. Sem tempos preestabelecidos. Parafraseando a figura maior na luta com o AVC em Portugal, o Prof. José Castro Lopes, Prémio Nacional de Saúde 2019, “A reabilitação não é uma esmola, mas um direito! Se preciso for, durante toda a vida!”. De facto, assim é. Porque também é fundamental assegurar o máximo de funcionalidade, possibilitando a vida pós AVC com a qualidade possível. E essa é uma função que está, em boa parte, a cargo da Medicina Geral e Familiar (MGF).
JM | Considera que atualmente os Cuidados de Saúde Primários (CSP) estão capacitados para apoiar um sobrevivente de AVC?
AC | Se falássemos só da qualidade e dedicação dos recursos humanos, até poderíamos, em muitos casos e realisticamente, dizer que sim. Mas a dificuldade começa logo em todos os constrangimentos com que trabalham, que dificulta muito a sua atuação. E há aspetos que têm de dar passos muito importantes. A criação de uma consulta do sobrevivente de AVC, periódica, a exemplo do que já acontece – e bem! – para outras patologias, ainda que apenas para utentes referenciados, parece-me um passo muito importante a dar. É certo que o AVC pode ter diferentes causas, algumas já abrangidas pelas tais patologias, mas é um evento demasiado complexo, que pode exigir acompanhamento permanente, antes de mais para evitar que se volte a repetir. Estamos a falar tão só da 1.ª primeira causa de morte e do 1.º motivo de incapacidade em Portugal! É indispensável falarmos também, por exemplo, da existência e da qualidade da já referida reabilitação multidisciplinar, também nos Cuidados de Saúde Primários (que está muito longe de ser só fisioterapia, e mesmo esta deveria ser com a especialização neurológica). Tem de se caminhar nesse sentido, e não é um custo, mas um investimento, com retorno! São só mais dois exemplos que demonstram que ainda há muito caminho a fazer no apoio aos sobreviventes de AVC, também nos Cuidados de Saúde Primários…
JM | Enquanto sobrevivente de AVC, que conselhos deixa a quem está a passar por um processo de recuperação? E aos familiares/ cuidadores destes doentes?
AC | Para a recuperação, provavelmente o sobrevivente de AVC precisará muito dos profissionais de saúde, da sua competência, e, particularmente nos primeiros meses, de cuidados atempados. A reabilitação, ou seja, a capacidade de voltar a uma vida o mais plena possível, depende também muito de nós. Porque, quaisquer que sejam as sequelas, com o AVC a vida não cessa; quando muito, adequa-se! É um dos lemas da Portugal AVC. Por isso, mesmo que às vezes seja difícil, tente manter um espírito positivo, e descubra novas maneiras de fazer as mesmas ou outras coisas: estará a contribuir para a sua plena reabilitação! Aos familiares/cuidadores, que, eventualmente de modo diferente, também sofreram o mesmo AVC, cabe participar neste esforço, com um otimismo moderado, alguma dose acrescida de paciência, em especial nos primeiros meses. Mas também favorecendo esse esforço, ajudando a (re)adquirir a própria independência, se possível logo a partir das atividades básicas da vida diária, o menos possível com “coitadinhos”. Porque continua a ser uma pessoa, com os seus direitos e deveres, e “funções” atribuídas (ainda que adaptadas) na família e na sociedade!