Rui Baptista: Critérios recomendados em sete áreas da Cardiologia

Inserida no programa das XXVII Jornadas de Cardiologia de Santarém, a sessão “Abordagem prática à referência de doentes dos Cuidados de Saúde Primários para consulta de Cardiologia em 2022” teve como palestrante o diretor do Serviço de Cardiologia do Centro Hospitalar de Entre o Douro e Vouga (CHEDV), Rui Baptista. A interação entre os Cuidados de Saúde Primários (CSP) com a consulta hospitalar de Cardiologia, no Serviço Nacional de Saúde, foi o tema da intervenção do cardiologista, sob moderação de Luz Pitta, do Hospital Distrital de Santarém, e de Marília Boavida, do ACES Lezíria. Saiba mais na edição 138 do Jornal Médico.

A palestra assentou num guia prático no qual Rui Baptista participou como co-autor e num estudo de avaliação das referenciações clínicas dos CSP ao Serviço de Cardiologia.

Segundo o Programa Nacional para as Doenças Cérebro Cardio Vasculares, da Direção-Geral da Saúde, relativamente às necessidades previsíveis da população da área da Cardiologia, perante a análise do desempenho do atual sistema de saúde (e da sua evolução) e de algum benchmarking internacional, “estima-se que as necessidades da área da Cardiologia sejam cerca de 5.000/100.000 habitantes/ano” adiantou Rui Baptista como introdução à sua intervenção.

No entanto, perante os dados de desempenho em consultas de Cardiologia, em 2012, em Portugal continental, “verificou-se que foram realizadas 425.130 consultas, o que correspondeu a uma média de 42,6 consultas por 1000 habitantes. Verificou-se também uma grande heterogeneidade no número de consultas por 1.000 habitantes entre regiões, com destaque para Lisboa e Algarve por terem, respetivamente, a média mais alta (70) e mais baixa (19) de consultas por 1.000 habitantes e com grandes desvios em relação à média nacional”, sumarizou o cardiologista.

Para otimizar o fluxo de doentes entre os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares, conforme explicou Rui Baptista, foi proposto pela AstraZeneca desenvolver um guia prático cardiovascular sobre “a abordagem nos Cuidados de Saúde Primários e referenciação para consulta hospitalar, segundo o consenso reunido por um grupo de peritos em Cardiologia e Medicina Geral e Familiar”.

 Conforme notou Rui Baptista, o guia teve como base um artigo, cuja iniciativa partiu de Helena Febra (Baptista R, et al. Practical aproach to referral from primary health care to a cardiology hospital consultation in 2022. Revista Portuguesa de Cardiologia.2022), publicado “com o intuito de estruturar em sete capítulos a referenciação dos doentes dos cuidados de saúde primários para as consultas hospitalares de cardiologia”, explicou o autor. “Porém”, advertiu, “este guia constitui apenas um manual de orientações que pode e deve ser adaptado à realidade local de cada centro”. 

 

Os sete capítulos do Guia Prático

Os sete capítulos que constituem o guia prático dividem-se nos seguintes tópicos: insuficiência cardíaca, hipertensão arterial, síncope, doenças valvulares, síndromes coronárias crónicas, arritmias e palpitações e, por último, fibrilhação auricular.

Insuficiência cardíaca 

Começando pelo capítulo dedicado à insuficiência cardíaca, cuja estrutura é comum aos restantes, Rui Baptista explicou que “cada capítulo é introduzido com a definição da doença, seguido do diagnóstico nos cuidados de saúde primários em Portugal”. Aproveitando o tema da insuficiência cardíaca, Rui Baptista sugeriu, tendo como cenário a realidade portuguesa, “que possa ser solicitado o NTpro-BNP”, ressalvando que “a análise clínica deste biomarcador pode não estar disponível ou comparticipado pelo SNS nos cuidados de saúde primários”. 

Após o diagnóstico e a classificação da patologia, é abordado o respetivo tratamento “numa perspetiva muito pragmática”. Como o especialista recordou, “de acordo com as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia, podem ser implementadas terapêuticas para a insuficiência cardíaca logo desde o diagnóstico estabelecido nos cuidados de saúde primários e, que depois de o doente ser referenciado para a Cardiologia, poderá ser revista e ajustada, se houver necessidade”. 

Permanecendo no tratamento da insuficiência cardíaca, o guia dedica uma parte à abordagem das comorbilidades e à distinção e interação da insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida/fração de ejeção preservada. 

Cada capítulo propõe ainda “os critérios de referenciação à consulta de Cardiologia”, salientou Rui Baptista, partilhando os critérios referidos no capítulo da insuficiência cardíaca:

  • Insuficiência cardíaca com fração de ejeção do ventrículo esquerdo <50% ou insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (≥50%) em certos casos como suspeita de doença restritiva/infiltrativa, 
  • Suspeita de miocardiopatia hipertrófica, hipertensão pulmonar moderada/grave ou dois episódios de internamento no serviço de urgência em menos de um ano.

“Cada capítulo aborda ainda os critérios de retorno aos Cuidados de Saúde Primários” que, no que concerne à insuficiência cardíaca, inclui: 

  • A recuperação de função ventricular esquerda em doentes sob terapêutica máxima otimizada, sem internamentos ou episódios de descompensação e avaliação etiológica concluída;
  • Indicação para investigação adicional e sem indicação para intervenção específica. 

“Nesta seção é também proposto um plano de seguimento da insuficiência cardíaca nos cuidados de saúde primários ante e após a consulta hospitalar”, acrescentou o especialista.

Hipertensão arterial

Seguindo-se a revisão sumária do capítulo sobre hipertensão arterial, Rui Baptista realçou que os critérios de referenciação coincidem com as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia, “que incluem a hipertensão arterial resistente, a hipertensão arterial no jovem, a hipertensão arterial de bata branca mascarada, presença de lesão em órgãos-alvo, entre outros”. O retorno aos cuidados de saúde primários “é recomendado quando a pressão arterial é controlada”, apontou.

Síncope

Passando a um capítulo considerado “mais complexo”, sobre a síncope, o cardiologista admitiu que o tema “gerou algumas dúvidas em relação os critérios de referenciação para a consulta de Cardiologia ou para os Serviços de Urgência”. Porém, entre os critérios apontados de referenciação para consulta de cardiologia encontram-se os seguintes:

  • Suspeita de etiologia cardíaca, critérios clínicos ou achados sugestivos em exames de diagnóstico disponíveis nos CSP (eletrocardiograma, exames laboratoriais, prova de esforço), 
  • Síncope recorrente, mesmo sem suspeita de etiologia cardíaca, entre outros. 

Doença valvular aórtica

A respeito da doença valvular aórtica, também os critérios de referenciação para consulta de Cardiologia “encontram-se bem definidos e de acordo com a Sociedade Europeia de Cardiologia”, referiu Rui Baptista, passando a destacar: 

  • Insuficiência aórtica grave documentada (sintomática ou assintomática);
  • Insuficiência aórtica moderada e dilatação do ventrículo esquerdo;
  •  Dilatação grave da raiz da aorta;
  •  Síndrome de Marfan com doença da raiz da aorta;
  • Bicúspidia aórtica; 
  • Doenças do colagénio;

Em relação ao plano de seguimento, o doente com insuficiência cardíaca aórtica ou outras doenças valvulares graves “deve ser seguido a nível hospitalar, cabendo aos CSP um controlo ecocardiográfico que se encontra bem definido nas guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia”, destacou o palestrante.

No que concerne às próteses valvulares, os critérios de referenciação para consulta de cardiologia são dois: próteses e sintomatologia cardiológica de novo e evidência de disfunção de prótese em ecocardiograma transtorácico. 

“É preciso compreender que ambos os critérios de referenciação devem ser discutidos a nível local”, salientou o cardiologista a propósito.

Síndromes coronárias crónicas

Seguiu-se sobre o capítulo das síndromes coronárias crónicas, considerado por Rui Baptista “o capítulo mais desafiante devido aos problemas com os exames e testes anatómicos em Portugal, nomeadamente a indisponibilidade de comparticipação do SNS para angio-TAC nos Cuidados de Saúde Primários.” Neste sentido, o guia admite a possibilidade do doente ser referenciado apenas a partir de “uma avaliação clínica inicial sugestiva de eventos de alto risco, sem exames mais detalhados”, notou o especialista.

Sobre este capítulo, o palestrante propôs, orientado pelo guia, “uma vez que a maioria dos doentes com síndrome coronária crónica medicados com a atual terapêutica tem bom prognóstico, o seu seguimento e monitorização podem ser dados nos CSP”.

Arritmias e palpitações

 “Igualmente complexo” é o capítulo dedicado às arritmias e palpitações, “já que é especialmente desafiante determinar quantas extrassístoles ventriculares são frequentes devido à falta de consenso e carece de uma avaliação local sobre a capacidade de dar resposta”, contextualizou Rui Baptista. 

Os critérios elencados de referenciação para a Cardiologia no caso das arritmias e palpitações, são os seguintes:

  • Suspeitas de diagnóstico de extrassístole ventricular ou supraventricular;
  • Bradicardia ou bradicardia supraventricular; 
  • Palpitações acompanhadas de achados evidentes por Holter.

Fibrilhação auricular

No campo da fibrilhação auricular, outro “que é também um tema desafiante e focado na identificação de doentes com insuficiência cardíaca, identificação de doentes candidatos a estratégias avançadas de controlo de ritmo e identificação de doentes”, considera Rui Baptista, elaborando que as estratégias anticoagulantes não podem ser implementadas em CSP, “podendo aqui ser recomendadas outras estratégias de prevenção de tromboembolismo arterial”, sugeriu o especialista.

São as recomendações aplicáveis ao mundo real?

No entanto, “para saber se estas recomendações são aplicáveis numa amostra real”, foi solicitado a um grupo de internos de Medicina Geral e Familiar a condução de um estudo (Caracterização das referenciações CTH ao Serviço de Cardiologia de um Hospital grupo C), com o objetivo de avaliar a adequabilidade das referenciações clínicas dos CSP ao Serviço de Cardiologia, apresentou Rui Baptista na continuação da sua palestra.  

Como explicou, todos os investigadores envolvidos classificaram a adequabilidade das referenciações clínicas e a quantidade da respetiva informação.  A amostra do referido estudo foi constituída por 89 utentes com idade média de 69 anos. De acordo com os resultados, “a área da Cardiologia com mais referenciação diz respeito às arritmias e palpitações” e Rui Baptista aproveitou a oportunidade para apelar aos cardiologistas “para que sejam mais claros a referir o que é clinicamente significativo nos relatórios dos Holters”.

Igualmente relevante foi o seguinte achado do estudo: as valvulopatias e arritmias é a área em que se nota menor adequabilidade das referenciações dos CSP para a Cardiologia, “porque há muitos doentes com doença valvular que são referenciados sem indicação para isso”, esclareceu Rui Baptista. 

Por contraste, “verifica-se que a área da cardiologia com maior adequabilidade de referenciação diz respeito à síndrome coronária crónica e as arritmias, embora as arritmias seja o tema que suscitou mais dúvidas nos avaliadores”. Com efeito, 41% das referenciações disseram respeito a arritmias, sincopes e palpitações.

“Os resultados deste estudo também sugerem que os critérios, tal como foram propostos, permitem que avaliadores diferentes cheguem a resultados semelhantes o que é importante porque permite gerar consensos”, frisou Rui Baptista.